domingo, 28 de outubro de 2012

Velório


Mataram alguém na esquina.
Das pessoas que passavam
fez-se uma multidão.
A vizinhança não,
mal olhou pela cortina.
Permaneceu em casa
diante do noticiário da tevê.

A multidão logo esvaiu-se,
que tinha mais o que fazer:
não havia sangue algum ao chão.
Onde é que já se viu morto que não sangra?
As tevês se desligaram
ao meio da novela.
Todos à luz da vela.



Escrito durante as oficinas do projeto Ave, Palavra,
promovido pela livraria A Terceira Margem.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Inventário


minha infância
coube numa caixa.
de sapato,
tamanho 35.

ao abri-la,
sem trinco,
um piano azul
sem bateria,
antigo e novo,
quem diria:
eu nunca fui pianista.

um jogo de lápis bicolores,
todos com a ponta em crista,
intactos:
desenhos que deixei
pr'algum dia.

uma engenhoca
em forma de ovo
que, ao girar,
partia-lhe a casca:
passarinho gerado
e jamais nascido.

e coisas de menina:
meu primeiro vestido,
um urso agarradinho,
a caneta cor-de-rosa
com o meu nome bordado.

cheques.

dentro da caixa, outra caixa:
como soluço guardado.

um globo sem eixo:
o mundo sem gravidade.

o desleixo de uma trena quebrada:
as medições de felicidade.

ao lado,
o noivo e a noiva de espuma
em branco encardido
ao aguardo de maio

a sorte eleita por um papagaio.
a grafia de quem me fez papel.

nessa caixa
de Melissa
que não tive
quando pequena.

que preguiça,
ainda calço 35.



Escrito durante as oficinas do projeto Ave, Palavra,
promovido pela livraria A Terceira Margem.

sábado, 6 de outubro de 2012

Estrelas


Espia, que o céu é comprido.
Confia, que o céu não tem fim.
Satélites mostram galáxias.
Quantas estão no camarim?

  

 
Poema minimalista inspirado na tela A Fronteira do Universo, de Carlos Zemek,
a qual retrata, a partir de fotografias do ponto mais distante do universo,
as galáxias mais longínquas e a fronteira tempo-espaço.