um dia desses,
um menino me perguntou:
essa barriga pesa?
não, respondi,
porque a gente reveza
e, na maior parte do tempo,
é ela que me leva.
é isso.
há seis, sete meses,
tenho sido uma barriga ambulante
que não sossega nem por um instante,
nem pra dormir.
e é tão curioso.
eu nem sei de quem parte a vigília:
de mim
ou da minha filha,
talvez mais atenta ao que me acontece
do que eu ao que realmente lhe alcança.
e me dizem gestante
e a ela, criança.
a maternidade é uma ironia,
porque lá de dentro
em silêncio
é ela que me cria.
antes dela,
eu não sorria
nem chorava assim.
eu não tinha desejos
nem planos de uma vida longa.
éramos só eu e meu umbigo.
e ele estufou-se
e me abriu pro mundo.
somente agora percebo
o quanto viver é dádiva
e o quanto amar é profundo.
nunca nos vimos
e por tantas vezes
já nos encaramos.
ela se estica,
os braços e as pernas ao limite.
e eu me contraio,
todo um ensaio pro parto.
quem é mesmo que vai nascer?
eu vou pro quarto,
apago as luzes,
rezo porque aprendi há pouco.
ela se mexe,
acende as luzes
e me pede pra lhe dar uma história.
e eu lhe conto,
ponto a ponto,
a última que me foi ensinada:
a de que vim menina
pra lhe ter mulher,
um ventre dentro de outro
e, quiçá, de outro
e de outro
e de outro.
é, verdade, menino,
a barriga pesa:
eu carrego o destino dos dias,
o desafio das décadas,
a concepção das eras.
mas meu corpo resiste
a todas as primaveras
na espiral das moléculas,
na gratidão do universo.
Monólogo escrito a partir de uma conversa com a atriz Lívia Gomes, grávida de Cecília.
Fotografia: Lívia Gomes, Cecília e Amanda Martins, por Felipe Saleme.
Twitter: Toda mulher carrega a própria origem.
Tema da Exposição Ventre, com fotografias de Diego Zanotti e poemas de minha autoria.