quarta-feira, 29 de março de 2017

Distração


a borboleta pousou
em minha pálpebra
para voar com meus
olhos. sou mais livre
que ela. eu sou o ar.
e o vácuo. sei disso.
e ela ainda não. ela
ainda não vê que o
colorido das asas é
só sedução. ela voa
mais perto do chão
que do céu. ela nem
sabe que viveu num
casulo. ela vem e só
me cobre a pálpebra
por me pensar vivo,
sem me sentir nulo.
vai, borboleta, siga
seu curso. mas leve
consigo o vento dos
meus cílios sem raiz.



Para Diego Zanotti.
Fotografia: Diego Zanotti.

domingo, 19 de março de 2017

Auditiva


o silêncio fala.
tenho ouvido
cochichos
de longe
como se
da sala.
palavras
mudas
como que
ocultas
nos nichos
da estante.
dizem-me
pouco,
mas já
o bastante.
do corredor
à porta,
eu danço
ao passo
da escuta.
e desço
a escada
à espera
da próxima
frase
diminuta.


quinta-feira, 16 de março de 2017

Dunas


eu já fui tantas
que até duvido da minha
individualidade.

se plurais
as alegrias e as dores,
incontáveis
as angústias e os amores,
e imprevisíveis
os medos e as saudades,
como posso caber
na forma provisória e estreita
do meu nome?

eu sou feita de muitas:
das que ainda sou,
das que descartei por inutilidade,
das que perdi por distração ou preguiça,
das que sonhei conhecer algum dia.

areia aos ventos,
eu sou todas as dunas possíveis
e, em dias de tempestade, movediça.

a real ameaça
às minhas crenças,
o desvio ou atalho
em meu próprio caminho.

há fantasmas que me habitam
e falam não sei de onde.
toda vez que você me chama,
um coro é que lhe responde.



Poema de abertura da primeira edição do Projeto "O som da poesia",
desenvolvido com Thiago Miranda.

domingo, 5 de março de 2017

Libidinoso


já nem preciso
fechar os olhos:

na sobra de sol
que pula
a janela do quarto

na dobra do lençol
que ondula
o relevo do ventre

na manobra do vento
que burla
o véu das cortinas

vejo você
à claridade do dia
e falo

entre...

lábios que amanhecem
pernas que obedecem
a cama está vazia



Tela: Floating Nude, de Gustav Klimt.