estranho esse estranhamento com a morte,
visto que ela se anuncia desde o primeiro
segundo de vida.
morre o homem aos noventa e muitos anos
e vai tão cedo!, por que tão cedo?, tão
querido que era, tanta falta fará.
será isso?
que saudade ansiosa seria essa a já
se queixar da ausência diante
do cadáver?
se não aos noventa e tantos anos muito bem
vividos, em que outra idade se poderia morrer
sem essa invariável sucessão de lamentos?
lamenta-se, afinal, o morto ou a morte?
a saudade é pretérita. é o choro da lembrança.
a confissão de impotência do homem, que, por mais
avançada a ciência, jamais se deslocará no tempo
além de nas escassas memórias.
o corpo é finito. é acúmulo de células.
a mansidão da matéria, que se sabe
provisória e simplesmente aceita
a circunstância.
que ninguém se engane: o morto é a morte.
o sussurro fúnebre aos ouvidos. o sinal ostensivo
de que o fim é próximo, queira Deus o mais
distante possível.
todo homem é menino.
A Manoel de Barros.