quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Encadeados


gostaria de que falasse comigo tudo
aquilo que guarda em seu baú trancado.
passe-me as chaves do cadeado:
eu lhe ajudarei a soprar
cada mínima palavra empoeirada.
todo segredo existe unicamente
pra ser revelado, mais nada.
passe-me as chaves do cadeado:
eu tocarei com a ponta dos dedos
a sua verdade silenciada.

não, eu não acredito que as tenha
perdido na madrugada.
passe-me as chaves do cadeado:
eu imagino que as leve
consigo pra todo lado.
cada segredo existe unicamente
pra ser revelado, mais nada.
passe-me as chaves do cadeado:
eu beberei na calada da noite
do seu mistério destilado.

passe-me as chaves.
por favor, passe-me as chaves,
que você sabe tanto quanto eu:
são elas que abrem
o meu baú guardado,
onde foram trancadas
as que abrem o seu.



A Ponte dos Cadeados, em Paris.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Epitáfio


estranho esse estranhamento com a morte,
visto que ela se anuncia desde o primeiro
segundo de vida.

morre o homem aos noventa e muitos anos
e vai tão cedo!, por que tão cedo?, tão
querido que era, tanta falta fará.

será isso?

que saudade ansiosa seria essa a já
se queixar da ausência diante
do cadáver? 

se não aos noventa e tantos anos muito bem
vividos, em que outra idade se poderia morrer
sem essa invariável sucessão de lamentos?

lamenta-se, afinal, o morto ou a morte?

a saudade é pretérita. é o choro da lembrança.
confissão de impotência do homem, que, por mais
avançada a ciência, jamais se deslocará no tempo
além de nas escassas memórias.

o corpo é finito. é acúmulo de células.
a mansidão da matéria, que se sabe
provisória e simplesmente aceita
a circunstância.

que ninguém se engane: o morto é a morte.
o sussurro fúnebre aos ouvidos. o sinal ostensivo
de que o fim é próximo, queira Deus o mais
distante possível.

todo homem é menino.



A Manoel de Barros.