quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Inventário


minha infância
coube numa caixa.
de sapato,
tamanho 35.

ao abri-la,
sem trinco,
um piano azul
sem bateria,
antigo e novo,
quem diria:
eu nunca fui pianista.

um jogo de lápis bicolores,
todos com a ponta em crista,
intactos:
desenhos que deixei
pr'algum dia.

uma engenhoca
em forma de ovo
que, ao girar,
partia-lhe a casca:
passarinho gerado
e jamais nascido.

e coisas de menina:
meu primeiro vestido,
um urso agarradinho,
a caneta cor-de-rosa
com o meu nome bordado.

cheques.

dentro da caixa, outra caixa:
como soluço guardado.

um globo sem eixo:
o mundo sem gravidade.

o desleixo de uma trena quebrada:
as medições de felicidade.

ao lado,
o noivo e a noiva de espuma
em branco encardido
ao aguardo de maio

a sorte eleita por um papagaio.
a grafia de quem me fez papel.

nessa caixa
de Melissa
que não tive
quando pequena.

que preguiça,
ainda calço 35.



Escrito durante as oficinas do projeto Ave, Palavra,
promovido pela livraria A Terceira Margem.

sábado, 6 de outubro de 2012

Estrelas


Espia, que o céu é comprido.
Confia, que o céu não tem fim.
Satélites mostram galáxias.
Quantas estão no camarim?

  

 
Poema minimalista inspirado na tela A Fronteira do Universo, de Carlos Zemek,
a qual retrata, a partir de fotografias do ponto mais distante do universo,
as galáxias mais longínquas e a fronteira tempo-espaço.

domingo, 2 de setembro de 2012

Em graças


há sonhos a que se guarda uma vida inteira.
de tão importantes, eles não têm urgência.
permanecem anos a fio sem esteira
em estado de silêncio e paciência.

são sonhos com que se pode morrer feliz.
guardados, terão cumprido sua missão:
muito antes de qualquer flor, serem raiz,
a fazerem dessa Terra um lindo chão.

e se o destino trouxer a tão grande sorte
de realizá-los antes mesmo da morte,
que da própria alma se possa ouvir um grito.

quando um sonho se transforma em realidade,
há que se sentir bem mais que felicidade:
de sonhador quase que se passa a bendito.



Um sonho realizado:
aprovado pela Lei Murilo Mendes edição 2012, um livro meu será publicado!
Muito obrigada a vocês, leitores, por me possibilitarem esta conquista!

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Militante


pare tudo
por um instante
e se pergunte:

você vê
em qualquer outro
um semelhante?

é de amor
e tolerância
o seu semblante?

o que sabe
está em uso
ou na estante?

sua fé
é cabo de aço
ou barbante?

[em silêncio,
Ele o espera
adiante]



Para Luciana Barbosa.

domingo, 8 de julho de 2012

Bioma


natural que sofra
a mulher vive no mangue:
sal, suor e sangue


terça-feira, 19 de junho de 2012

Passagem


e eu
que só queria
lamber os dedos
de doce de leite

percebi
que a vida
me trazia segredos
de outros sabores


: os sopros em versos
  os sonhos a cores

       aflição nas sortes
       lição nas dores

                alguns passaportes
                diversas casas

                         um filho pronto
                         um guia de asas

                o futuro em mapas
                o céu de improviso

       um relâmpago mudo
       uma lua em sorriso

 o amor de escudo
 o medo como alavanca :


e tudo
que houver
atrás dessa porta

que enfim descobri
sem tranca


segunda-feira, 11 de junho de 2012

Se é pra falar de amor


muito se fala de amor
antes do amor:

essa vontade
de ter o outro
ainda idealizado

essa saudade
de um encontro
apenas imaginado

é que a possibilidade de amar
parece amor consolidado

mas amor sem experiência
tem algum significado?


               também se fala de amor
               durante o amor:

               essa vontade
               de manter o outro
               enamorado

               essa saudade
               banida a cada encontro
               marcado

               é que a oportunidade de amar
               parece amor consolidado

               mas amor sem convivência
               não é um tanto precipitado?


                              e pouco se fala de amor
                              após o amor:

                              essa vontade
                              de ver o outro
                              sob cuidado

                              essa saudade
                              mantida a todo encontro
                              selado

                              a capacidade de amar
                              é amor consolidado

                              amor com resistência,
                              o único autenticado



Twitter: O amor já nasce velho.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Original


quando se bebe da palavra
bebe-se da Fonte

a palavra é luz
disponível no horizonte

claridade cujo trago
esclarece ou inebria

não é dessa luz viciante
que é feita a poesia?


Escrito a partir de:

Poesia: aluzcinógeno verbal.

No princípio era o Verbo

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Reveses


porque atingir uma meta
é quase sempre enfadonho,
daquilo que se alcança
se perde o sonho,
eu fiz da minha
o próprio caminho
: essa linha
      em desalinho
             que se pretende reta


e com a única meta
sabidamente infinda,
tanto que hei
de caminhar ainda,
eu saboreio
as incertezas do vento
: não é
      do titubeio
             dos passos
                   que se faz dança
                           o movimento?


a vida
é balé sem plié,
via sem acostamento


quem se
deslumbra
à luz do dia
(como se sua)
não se guia
(a contento)
à penumbra
das noites
sem lua


que perdição é maior que a ilusão de uma conquista?


quarta-feira, 11 de abril de 2012

Míope



as palavras estão aí
nalgum lugar que desconheço:
por entre as pedras ao chão
em meio às colunas de gesso

e por mais que tropece nelas
ou esbarre em sua grafia,
a verdade é que mal as veem
meus olhos de miopia

sem elas não sou poeta
ou sou por estar incompleta?

escrever é posse
ou busca?

poesia é precoce
ou tardia?

poema é palavra
ou silêncio que se pronuncia?

eu sei que sigo andarilha
de óculos e sapatilha,
as palavras por aí
nalgum lugar que desconheço


O Doce de Lira faz 3 anos.
Obrigada a todos os leitores!

terça-feira, 6 de março de 2012

A desventura do ócio



Fosse pra ser,
teria sido.
Não se chora
pelo leite
nem fervido.

Arrepender-se
do que não se fez
é tolice.
Dói como se talvez
existisse.

Não,
não há se,
nem se não,
tudo é vão.

Passado
é letra morta
que apodrece
sem caixão.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Feicebuqui



Eu passeio pelo Face com peneiras.
Ou elas são muito finas,
ou nele só há besteiras.
Quase nada se aproveita:
apenas um ou outro artigo,
algum vídeo interessante
ou alguma imagem eleita.
De resto, futilidades.
Quase todos se creem celebridades:
expõem-se em fotografias íntimas
e noticiam os próprios destinos.
O que deu nesses meninos?
Por que se põem em vitrine?
Onde está sua autocensura?
Há assuntos que exigem cabine.
E eu saio do Face arrependida:
tempo desperdiçado nessa sociedade falida.


Twitter: O homem se revela pelo uso que faz das ferramentas.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Superego



Eu não sei se te conheço,
se nem tu sabes quem és.
Finges desde o começo
ou somente sob stress?
Quanto de ti é verdade:
pouco, muito pouco ou nada?
Pois sei que vives à sombra
de uma luz imaginada.

Quem te vê não te conhece,
quem te ama ama a ninguém.
Escolheste viver em drama:
o mal a encobrir o bem.
Por trás dessa fantasia,
quem é aquele que sonha:
quem a veste de ironia
ou a despe de vergonha?


A Padre Amaro, de Eça de Queirós.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Significâncias



nem toda flor é rosa
nem todo azul é céu
nem todo texto é prosa
nem todo doce é mel

nem todo espelho é mágico
nem toda prece é fé
nem todo amor é trágico
nem toda meia é pé

nem todo pão é trigo
nem todo pó é sal
nem todo anjo é amigo
nem todo lobo é mau

mas toda brisa é saudade
todo lençol é divã
todo soluço é verdade
toda esperança é manhã


Escrito em 11 de julho de 2011.
Fotografia minha: nem todo mar é bravo.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Tratado de fim de ano



as ruas estão cheias
as vitrines, decoradas
as calçadas, derrapantes
as noites, mal dormidas

dezembro se repete
exatamente como antes:
todo ano, a mesma angústia
entre luzes coloridas

de onde, esse nó na garganta:
é dezembro que o agiganta
ou ele vem das despedidas?

de onde, esse aperto no peito:
ele viria de qualquer jeito
como selo de horas perdidas?

e as pessoas se cumprimentam
como se fossem todas queridas...
para que abraços forjados
quando as testas estão franzidas?

dezembro se repete
exatamente em pormenores:
a ceia pelos lares
a tristeza aos arredores

entre estrelas e guirlandas
e velas e altares
e piscas nas varandas

muitos se afligem em sigilo:
como de si fazer festa
se o que se quer é asilo?



Ilustração de Fabrícia Batista.

domingo, 27 de novembro de 2011

A Voz



a vida pede passagem
enquanto eu peço carona

a alma é livre em viagem
o corpo é que me aprisiona

viver exige coragem
disponho do que não sou dona

o sonho é breve paragem
de tão leve o corpo ressona

a alma me leva consigo
a um tempo futuro ou antigo

e assim me revela a vantagem:
só mergulho se venho à tona


domingo, 13 de novembro de 2011

Retrato falado



sim, eu gostaria de voltar
ao começo

pra repetir cada tropeço
que me trouxe até aqui

que graça teria a vida
sem as lágrimas que perdi?

de tão valiosa,
a sombra é brilhante

só depois se percebe
o que não se vê durante

domingo, 23 de outubro de 2011

O Grande Mandamento



diga:

quando foi
sua última prece,

consolo a quem adoece,
pedaço de bolo ao faminto,
abraço verdadeiro por instinto

- amar ao próximo como a si mesmo -

é tão mais difícil do que parece
ninguém se ama por inteiro
e se dá o quanto merece

amor é de dentro
e floresce:

doe-se

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Meninice



era tempo de criança
de cantiga e roda dança
de canjica e mariola
de bola no pé de moleque

beijinho de salada mista
no chão pista de gude
pião e banho de açude
passeio de trem aos domingos

boneca de pano e casinha
o jogo de amarelinha
o vento a subir a pipa
o sopro a girar cata-vento

tantos anos se passaram
e passado nem parece
meninice é travessura
de quem se desobedece


Para Fê Oliveira.
Escrito a partir de roteiro.

sábado, 8 de outubro de 2011

Nota da Confeiteira



O Doce de Lira completará 2 anos e meio no dia 11 de outubro,
com cerca de 670 seguidores e mais de 31.000 acessos.

Para comemorarmos a data, a Confeitaria terá nova vitrine!
A marca é da talentosa Fabrícia Batista.

Muito obrigada a todos os leitores!

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Riso


riso
não foi feito
pra caber em bolsa
pra se levar em bolso
pra se guardar em gaveta

de riso
que vem do peito
não se lava louça
não se tem reembolso
não se pede gorjeta

riso
há de ser solto
talvez revolto
quase careta

riso
é um som mudo
boca de veludo
de outro planeta



Para Betita, minha irmã,
que me inspirou no Facebook
com a música Can't help but smiling,
de Devendra Banhart.