minha infância
coube numa caixa.
de sapato,
tamanho 35.
ao abri-la,
sem trinco,
um piano azul
sem bateria,
antigo e novo,
quem diria:
eu nunca fui pianista.
um jogo de lápis bicolores,
todos com a ponta em crista,
intactos:
desenhos que deixei
pr'algum dia.
uma engenhoca
em forma de ovo
que, ao girar,
partia-lhe a casca:
passarinho gerado
e jamais nascido.
e coisas de menina:
meu primeiro vestido,
um urso agarradinho,
a caneta cor-de-rosa
com o meu nome bordado.
cheques.
dentro da caixa, outra caixa:
como soluço guardado.
um globo sem eixo:
o mundo sem gravidade.
o desleixo de uma trena quebrada:
as medições de felicidade.
ao lado,
o noivo e a noiva de espuma
em branco encardido
ao aguardo de maio
a sorte eleita por um papagaio.
a grafia de quem me fez papel.
nessa caixa
de Melissa
que não tive
quando pequena.
que preguiça,
ainda calço 35.
Escrito durante as oficinas do projeto Ave, Palavra,
promovido pela livraria A Terceira Margem.